O paradoxo do navio de Teseu

Conta a história que Teseu, filho de Esdras, Egeu e Poseidon, e responsável por derrotar o minotauro do labirinto de Creta, fez uma longa viagem de navio, de aproximadamente 50 anos. Ao longo de sua jornada, Teseu fora substituindo as peças desgastadas de seu navio, de modo que, ao final da viagem, todas as peças haviam sido trocadas. Pode-se dizer que o navio que deixou o cais na partida é o mesmo que chegou? Filósofos se dividem.

As discussões permeiam o sentido da essência das coisas. Quando se acredita em alma, em bagagem, em uma história por trás das cascas. Heráclito comparou o navio a um rio, que renova suas águas, mas continua sendo o mesmo. Já Tomas Hobbes propôs montar um segundo navio com as peças substituídas. Qual deles então seria o verdadeiro?

Em uma extrapolação para as pessoas e os seres, o conjunto de hábitos que nos formam fazem nossa identidade. Inevitavelmente mudamos, e podemos ou não nos manter fiéis à nossa essência. Mudar ou não mudar são consideradas falhas nos dias de hoje. “Você não muda” pode soar como elogio ou defeito por alguém se manter o mesmo, ou ainda ser um fato sublinhado de que “você deveria ter mudado ao longo do tempo”. A questão não é simplesmente se mudamos ou não, mas como os outros reagem às nossas mudanças ou inércias.

Deste ponto de vista, parece então algo inteiramente egoísta projetamos nossa opinião nos outros em como esperamos que eles sejam para nós. Como o convés nos convém? Se o navio tivesse sido presente de uma pessoa especial – alguém que se foi, por exemplo, e fosse importante que aquele legítimo barco chegasse a seu destino final, cada nova tábua seria relutantemente negada. Porém, quando se aponta para a travessia, o navio é um mero instrumento para se ligar dois pontos.

E sob o ponto de vista do próprio navio? Se ele levar como um desafio velejar por 50 anos, faria o possível para chegar lá, ainda que com cicatrizes e adaptações. Sob a ótica de um teste de sua construção inicial, onde avaliaria se seu projeto, peças e sua resiliência às intempéries marítimas, talvez seja melhor ver até onde consegue chegar do jeito que está.

Nós somos os navios e os passageiros são os outros. Ser o que os outros esperam é, inevitavelmente, ser o que eles querem que nós sejamos, para que possamos oferecer algo a eles. Ser navio só faz sentido se soubermos para que servem as velas, e estivermos dispostos a içá-las, girá-las, recolhê-las, navegando sempre que houver vento, e não sob determinado vento. Ou, ainda, navegar até certa corrente, se é para o fim dela onde se deseja chegar.

Passei por reformas. Voltei a navegar. Alguns passageiros estranharam a coragem que meu casco rompia as águas, e se questionavam sobre a rota seguida. Checavam suas bússolas, tentavam girar o timão. Não eram eles capitães. À medida que eu, navio, me distanciava do porto, passageiros se lançavam ao mar. “Este não é o navio com o qual eu costumava navegar”, murmuravam, encharcados. Não eram eles capitães. Capitães são os últimos a abandonar seus navios. Alguns faróis apenas observavam minha partida. Seriam mesmo faróis? Outros apontavam seus faroletes para minha proa, como num último gesto de gratidão, um aceno na escuridão.

O mar avança e agora mal posso ver o continente. Lançar-se ao mar nunca fizera tanto sentido. Sigo desafiando os mares, mas não os vejo como adversários a serem vencidos, e sim como meios que me incentivem a flutuar. Não há navio sem mar. Ainda que a maresia me corroa, ou que eu precise de manutenção ao longo da jornada, estou disposto a ser algo novo de novo. E se eu seguir acreditando em essência, encontrarei um novo porto adiante. Caso perca minha crença nas almas, terei sido responsável por levar meus passageiros em parte de suas jornadas. Porque, como gosto de dizer: já não sou mais quem eu era, mas ainda sou quem eu fui. E navios não tem retrovisores.