Machado de Assis em tempos de redes sociais

Machado de Assis é um daqueles autores que me fazem orgulho de ser brasileiro. Suas obras coroam nossa literatura, e suas histórias parecem sempre que foram escritas para o momento em que se vive.

Uma das minhas atividades de quarentena foi de organizar alguns livros que tenho em casa, e dei a sorte de encontrar uma de suas crônicas na minha estante: O Alienista. Ao fitar o tímido livro de 77 páginas, resolvi visitar o universo Machadiano e todo seu brilhantismo. Um punhado de literatura ia me afastar das timelines das redes sociais, onde o mundo estava meio chato e precisava ser silenciado por um tempo.

O que Machado havia escrito, na verdade, serviu como uma lição para mim.

Conta-nos o livro que um sujeito esguio, de nome Simão Bacamarte, nascido no Brasil, tendo estudado medicina em Coimbra e Pádua, regressara ao seu universo, Itaguaí, com o propósito de se envolver com os mistérios da mente humana.

Percebera o médico que, nas palavras do autor, a vereança da cidade de Itaguaí, entre outros pecados, tinha o de não fazer caso de seus dementes. Cada louco furioso era trancado em sua própria alcova em casa. Simão propôs, então, a criação da Casa Verde, um hospício municipal, que logo depois de inaugurado, passou a abrigar uma parte significativa dos itaguaienses.

A crônica retrata que, a falta de critérios psiquiátricos, ou ainda, por se tratarem de terem sido concebidos pelo próprio alienista, fizeram com que grande parte da população fosse trancafiada na Casa Verde, ao passo de que, em um determinado momento, havia mais doidos que sãos em Itaguaí – quatro quintos, segundo os registros. Tal foi a sorte que a sociedade se pôs a questionar sobre o que se entendia mesmo por loucura.

Simão, desafiado pela vontade popular, nublada de suspeitas sobre a sua própria competência, passou a entender como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades, e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto, sendo este o comportamento normal humano. Manteve, portanto, a reclusão apenas dos que julgava perfeitamente sãos e dos constantemente loucos.

Os métodos de Bacamarte para a cura de seus pacientes eram muito inesperados. Estando os loucos divididos por classes, Simão atacava a qualidade predominante de cada um deles. Se o paciente era modesto, bastava-lhe expor às coisas e circunstâncias que lhe causassem um sentimento oposto a isto: anéis, distinções honoríficas e casacas os desestabilizava, e tão logo oscilava em sua loucura, o paciente era liberado.

O ilustre alienista fez curas pasmosas, que excitaram a mais viva admiração em Itaguaí. Ele, no entanto, não se via sob esta ótica, tampouco usufruía dos louros da fama de ter curado uma cidade quase que por inteira. E, assim, por considerar-se sempre modesto, e por nunca perceber o desequilíbrio de suas faculdades, obedeceu aos seus próprios critérios de constância sã, recolhendo-se, finalmente, ao seu mundo, a Casa Verde, onde permaneceu até que a morte o viesse defraudar do benefício da vida.

De volta ao nosso tempo – e às nossas loucuras -, após um breve período sem redes sociais, experimentei-as novamente em pequenas doses. Depois em doses maiores, e cada vez mais. As inofensivas checadas nas mensagens inboxtornaram-se alguns minutos de atenção ao que nem sempre nos interessa, chegando a vergonhosa marca de 6h30 de tempo de uso diário – quase a metade do tempo em que tenho passado acordado. E, ao tentar silenciar todos aqueles que eu não precisava dar ouvidos por ora, me vi como Simão Bacamarte, prendendo todos aqueles que pensavam diferente daquilo que ele entendia como certo. Antes mesmo que silenciasse quatro quintos de todos os meus contatos, percebi que era eu que, por enquanto, não cabia em Itaguaí.

E que, portanto, em tempos em que o cotidiano e a loucura passeiam de mãos dadas, talvez meu lugar mais seguro seja na literatura de outrora, onde a vida parecia ser mais simples, como o virar de algumas páginas, mais fluidas do que qualquer timeline cotidiana.

            Como já nos dizia o frontispício da Casa Verde: veneráveis são os doidos, pela consideração que Alá – ou Deus, segundo Bacamarte – lhe tira o juízo para que não pequem.